Fernando Pellisoli
Sou o Poeta da Loucura da Pós-modernidade
Textos
AFOGAMENTO


Era uma manhã ensolarada - toda florida! E os passarinhos cantavam como nunca. Era, sem dúvida, um dia esplendoroso, propício para uma grande aventura. E mal sabia que algo de muito trágico estava para acontecer naquele domingo colorido e belo - de uma beleza transparente e límpida.
Saímos (eu e meu irmão mais velho) à rua procurando alguma coisa para fazer. Sim, o dia nos convidava para que fôssemos brincar mais longe do que o devido. A distância era salutar naquele dia de verão desfrutável. E nós queríamos desfrutar, o máximo possível, de tudo que havia naquele dia mágico. Eu, com apenas nove anos, e meu irmão, com onze anos, éramos ainda muito inocentes, criados sob o zelo dos pais amorosos. Mas naquela manhã, acordamos mais cedo do que o previsto. E a beleza do dia nos seduziu, e, resolvemos, então, burlar as regras de boa convivência da nossa família: deixamos os nossos pais ainda dormindo. E, fomos, seguindo os nossos instintos, caminhando, freneticamente, num lampejo, ao nosso destino.
Mal havíamos ultrapassado 300 metros de nossa casa, encontramos o Flávio. Ele estava eufórico. Não foi muito difícil para nos convencer: já estávamos decididos em ir nadar num açude. Era um pouco distante, mas a vontade de explorar o desconhecido era maior. O meu irmão Paulo ficou um pouco apreensivo, mas acabou aceitando a idéia. E, então, descemos ladeira abaixo na direção do proibido. Paulo, no trajeto, demonstrava preocupação. Eu e o Flávio dávamos risadas, saboreando cada segundo daquele dia inenarrável. O cheiro da morte era pressentido por Paulo, que já no meio do caminho queria a desistência da aventura. No entanto, estávamos cada vez mais perto do entretenimento, e não havia como mudar o rumo dos acontecimentos. E Flávio vangloriava-se, a todo instante, dizendo ser profundo conhecedor do tal açude.
Enfim, chegamos alegres no local do açude. Era uma paisagem rústica, melancólica, e a água do açude era fundamente escura, pavorosa e assustadora. Flávio foi o primeiro a jogar-se na água, demonstrando que o açude dava pé. E que não havia perigo algum. Eu não pensei duas vezes: joguei-me açude adentro, começando a brincar com a água. Chamei, euforicamente, o meu irmão Paulo. Este se recusou terminantemente em fazer parte da perigosa aventura, pois ele não sabia nadar. Na verdade, nenhum dos três sabia nadar. Era tudo fantasia contrastando com a beleza do dia ensolarado, arredio e quentíssimo.
De repente, Flávio começa a debater-se e a espernear: ele caíra num buraco e desesperou-se. Alucinado, consegue a minha aproximação. E num movimento brusco, puxou-me para dentro do buraco. Eu caí de costas. E comecei a me afogar. O fundo do açude era grudento, nojento e propiciava a incapacidade de evacuar o local. O Paulo assistia tudo sobre o barranco sem fazer nada: coitado estava em pânico! Queria ajudar, mas tinha medo de se afogar. Justamente, e, então, se mantinha neutro. E o Flávio e eu estávamos nos afogando literalmente. Eu estendia a minha mão para o meu irmão, no intuito que ele a agarrasse com a sua e me salvasse. Mas tudo fora em vão. Eu já tinha descido três vezes, e estava prestes a descer pela quarta e última vez, pois já havia engolido o açude putrefato inteiro.
Quando só restava a última das esperanças, e o quadro era de grave encontro com a morte, através do afogamento, eis que surge (do outro lado da margem) um negrinho que acabou virando herói. Quando ele percebeu o que estava acontecendo, rapidamente jogou-se na água em direção ao lado do afogamento que ocorria. O negrinho só viu o Flávio se debatendo, pois eu já havia descido para a morte. Sensação horripilante, nas águas escuras, engolindo água sem cessar. Eu me dei por morto. Mas o milagre aconteceu. Meu anjo de guarda foi o único a me ajudar. No meio de tanto desespero, debatendo-me loucamente como um peixe fora da água, eu bati em algo. Movido por um último suspiro, agarrei-me naquela coisa. E entreguei a minha alma para Deus.
Flávio foi salvo pelo negrinho, e eu, justamente, havia agarrado, com firmeza, uma das pernas do Flávio. Fui, também, retirado para fora do açude, e, literalmente, vomitei toda a água escura do açude diabólico. Meu irmão Paulo era digno de pena tamanha a sua fria constatação da impossibilidade de me salvar. Mas eu entendo o seu estado emocional abalado, e, também, o seu instinto de preservação... Ingente verdade, antes eu do que ele. Ou melhor, já que dois estavam se afogando, qual o sentido de mais um afogamento, pois ele, também, não sabia nadar.
Crescemos e nos tornamos adultos. Paulo ficou traumatizado. E por um bom tempo, ainda tinha medo de nadar até em piscina. Hoje ele nada normalmente, sem a menor restrição, mas sempre com cautela. O Flávio seguiu o seu rumo e nunca mais o vi. E eu aprendi a nadar por conta própria. Aproveitei bastante piscina e praia, sem ter adquirido trauma algum. O aprendizado que eu herdei do meu afogamento é que nesta vida ninguém morre antes da hora derradeira.




FERNANDO PELLISOLI
Enviado por FERNANDO PELLISOLI em 17/09/2010
Alterado em 18/09/2010
Comentários